SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LAGOS
(BREVE HISTORIAL)
Na Idade Média, devido à forte crença de que a vida terrena era uma preparação para a vida além da morte, havia uma imensa preocupação com a salvação da alma que podia ser alcançada pelos cuidados prestados aos sofredores. Consequentemente, a obrigação de todos contribuírem na medida das suas possibilidades para o alcançar deste objetivo é a circunstância que explica o crescimento exponencial, por toda a Europa, do número de estabelecimentos de assistência. Desde a fundação de Portugal, existem registos da existência de instituições, confrarias e/ou afins por todo o território nacional.
As Misericórdias – ou Santas Casas da Misericórdia, como são conhecidas actualmente – tiveram origem em confrarias, destinadas a serem uniões pias de exercício da caridade (prática das obras de misericórdia) e do mutualismo, dotadas de órgãos administrativos e regidas por um “Compromisso” (o equivalente a estatutos ou regimentos actuais). Os membros das Misericórdias, denominados de Irmãos, dividiam-se em duas categorias: de 1ª condição ou maiores, que eram nobres, terratenentes e clérigos; de 2ª condição ou menores, que eram mecânicos, artesãos, mareantes, etc.
Cada Confraria tinha um número fixo de irmãos de cada categoria, estipulado no respectivo Compromisso, geralmente em partes iguais. Desde os primórdios das Misericórdias, que só delas podiam fazer parte aqueles que tinham recebido “a água do baptismo”. Posteriormente, várias determinações reforçaram a proibição de integrar cristãos-novos, ou judeus convertidos ao cristianismo.
De acordo com a doutrina eclesiástica, as obras da Misericórdia são 14, dividindo-se em dois grupos:
Obras Espirituais
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Obras Corporais
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1ª: ensinar os simples
2ª: dar bom conselho a quem o pede
3ª: castigar com caridade os que erram
4ª: consolar os tristes desconsolados
5ª: perdoar a quem nos errou
6ª: sofrer injúrias com paciência
7ª: rogar a deus pelos vivos e pelos mortos
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1ª: remir os cativos e visistar os presos
2ª: visitar e curar enfermos
3ª: cobrir os nus
4ª: dar de comer aos famintos
5ª: dar de beber a quem tem sede
6ª: dar pousada aos peregrinos e pobres
7ª: enterrar os mortos.
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O rei D. Afonso V, continuado pelo rei D. Manuel I, iniciou uma política centralizadora das obras de assistência. Mas coube a D. Leonor, na ausência do monarca, a fundação da primeira Santa Casa da Misericórdia, na Capela de Nossa Senhora da Piedade da Terra Solta, no claustro da Sé de Lisboa, e a promulgação do respectivo Compromisso, que foi a partir de então considerado modelar.
D. Manuel I achou por bem que este modelo fosse aplicado por todo o Reino, determinando em 1499 “que em todas as cidades, vilas e lugares principais de nossos Reino se estabeleçam Confrarias da Misericórdia”, obrigadas a adoptar o Compromisso da de Lisboa. Assim, a Misericórdia de Lagos é uma das mais antigas do país, pois a sua fundação é anterior a 1501, data do documento mais antigo conhecido desta Irmandade.
A fundação da Igreja da Misericórdia de Lagos, actual Igreja de Santa Maria, na Praça do Infante é anterior à data de criação da Confraria, pois a sede escolhida foi uma Capela já existente, que sofreu amplas reformas ao longo dos tempos, culminando com a sua reparação após o terramoto de 1755.
A partir desta data, por empréstimo da Misericórdia, passou a funcionar como Igreja Matriz, pois a Igreja Matriz de Santa Maria da Graça ficou irremediavelmente arruinada (actual Largo de Santa Maria).
O valor dos serviços prestados pelas Irmandades e o prestígio de que gozavam, pois agregavam os membros das elites existentes nas localidades (nobreza, clero, profissões liberais, mestres e proprietários), fizeram com que as suas actividades fossem protegidas pelos poderes públicos e que fossem alvo de benesses, doações ou privilégios diversos, características bem evidentes na história da Misericórdia de Lagos. Sendo Lagos uma das mais importantes cidades do Reino do Algarve, a sua Misericórdia foi a que beneficiou de particular atenção por parte dos monarcas portugueses, existindo vários documentos régios que lhe concederam privilégios, graças, mercês e, inclusive, pedidos.
A importância da Misericórdia de Lagos não se esgota na atenção que lhe dedicou a realeza. Inúmeros particulares doaram bens (em troca de orações pela sua alma quando falecessem), o Papa Urbano VIII concedeu várias indulgências aos seus Irmãos, e os Bispos e Governadores do Algarve dispensaram-lhe a sua protecção, desempenhando cargos, doando bens e distribuindo benesses. Entre as personalidades de relevo que ao longo dos anos estiveram ligadas à Misericórdia de Lagos, destacam-se D. Gaspar de Leão Pereira (Bispo de Cochim e Arcebispo de Goa) e o seu irmão Fernão de Álvares, D. Francisco do Cano, D. Fernando Martins Mascarenhas, D. Simão da Gama, Cardeal D. José Pereira de Lacerda (Bispos do Algarve) e Martim Correia da Silva (Governador e Capitão-Geral do Reino do Algarve).
Em 1618, por vicissitude dos tempos e, nomeadamente, da União Ibérica, a Misericórdia foi dotada de novo Compromisso que se manteria em vigor até à altura das grandes convulsões políticas e sociais do último quartel do século XIX. O regime liberal tentou alterar a organização da Misericórdia de Lisboa, dissolvendo a Irmandade Canónica e, a partir de 1851, aquela Misericórdia passou a ser administrada por Mesas nomeadas pelo Governo e compostas por pessoas que não faziam parte da Irmandade. Com a implantação da República, em 1910, e mais concretamente com a Lei de Separação da Igreja do Estado, o Governo mandou rever os Compromissos das Misericórdias, no sentido de se manterem como instituições de cariz assistencial, mas sem ligações à Igreja, facto que foi desrespeitado e que criou clivagens e tensões constantes.
Já em pleno Estado Novo, houve abundante legislação sobre este tema, enquanto as dificuldades de financiamento e de organização enfraqueciam, de modo geral, a capacidade de acção das Misericórdias em todo o País, facto a que a de Misericórdia de Lagos não ficou alheia. Com o Decreto 35108, de 7 de Novembro de 1945, foi determinado que as Misericórdias se dividissem em duas instituições de cariz distinto: uma laica, para exercício da caridade, e outra para assegurar o culto religioso público.
A comissão administrativa que dirigia a Santa Casa da Misericórdia de Lagos em 1926 elaborou um novo Compromisso que designou de “Estatutos”, no qual os Irmãos passam a ser designados por “Sócios”, aprovado por Despacho Ministerial e publicado no Diário do Governo 328, 2ª Série, de 9 de Outubro de 1926.
A posição dúbia em que as Misericórdias se encontravam, devido a esta cisão da sua vertente de assistência da vertente espiritual, agravada com a Revolução do 25 de Abril de 1974, só ficou tacitamente clarificada com a publicação dos Estatutos das Instituições Particulares de Solidariedade Social, em 1979, e posteriormente em 1983, que as restituíram à sua categoria de Irmandades. Esta evolução culminou em Lagos com a Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Lagos a redigir novo Compromisso, a 21 de Dezembro de 1981 (que também foi designado como Estatutos), erigido canonicamente em 1982, registado no Livro das Irmandades das Misericórdias em 29 de Abril de 1982.
Dr.ª Tânia Fernandes
Bibliografia:
CORRÊA, Fernando Calapez - Elementos para a história da Misericórdia de Lagos. Lagos: Santa Casa da Misericórdia, 1998
Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana, Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico, Património Arquitectónico — Igrejas de Misericórdia, Lisboa, IHRU, IGESPAR, 2010 (Kits património, nº 6, versão 1.0).
URL: www.portaldahabitacao.pt; www.monumentos.pt, www.igespar.pt.